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22.10.07

M A R vivo

Há alguma coisa mais triste do que perguntar se há alguma terra onde as pessoas nasçam todas mortas? Existe naturalidade nisso, tanta quanto existe no achar-se natural o azedo eterno das laranjas? E ser-se um desses natimortos, um vegetativo, uma célula da estrutura orgânica que liga e ajuda a articular os ossos de uma ilusão apodrecida?

Um dia um espelho, talvez um charco, reflecte-nos como títeres dançantes e espaventamo-nos de drástica satisfação. Fica-nos a miragem duma profundidade para lá da banalidade arriscada da focinheira, sem nos determos o olhar no resto, no que está atrás de nós, no que nos emprestaram para a posse. Não vimos nos espaços vagos a sujidade branqueada dos dentes gigantes que já lá estavam a rir-se de nós. E nos interstícios os podres, visíveis se não fosse da nossa invisualidade que tal boca se alimenta. Condição caínha, topamos por vezes o cheiro. Pestilento, consideraríamos se na nossa redoma da Frigidez Inata não tivéssemos uma abjecta, viciada, forçosamente não denominável atmosfera; pestilenta a consideraríamos se, logo aposto ao próprio acto da concepção não nos tivessem instilado no colo esconjuro o veneno apropriado que nos acompanha na nossa fruste saída, que jorra sangue placenta, aos baldões connosco, rissoizinhos acabados de fritar.

Boas asas, das que, já prevenidas, trazem nos cílios delicados de suas penas, as imprescindíveis gotículas de oxigénio, vão por vezes passando e privando no seu honrado marasmo alguns dos defuntos que, mais afortunados, têm o prazer de sentir o seu enterro rolar por outros asfaltos; e alguns mesmo, da desdita de serem reanimados da sua mortal letargia por um qualquer desses lapsos de que a vida ou a sua congénere de situação são capazes mesmo sem quererem, está visto.

E é por vezes destas turbulentas salgalhadas, destes entras-e-sais, destes renascimentos e novos-zombies, que o saco se revolve, e deixa escorrer alguma peçonha pelos orifícios de supetão abertos. E lá está: queixas dos vizinhos chegam, por estridências de papa-merdas, deturpadas e logo rotuladas de ofensivas e bem-cheirosas, pese embora o virem por vezes atafulhadas do mesmo substrato malcheiroso que pretendem atingir. Mas quando, por exemplo, uma insuspeitada fragrância de rosa consegue, na sua virgindade de raio arremessado, pelos interstícios atingir o coração da cloaca, então gera-se um caos inaudito: os mortos mais mortos ou matam-se ou encomendam nova sepultura, isto enquanto não conseguem, como é óbvio, o passaporte interino para os abrigos de merda-até-à-raiz-dos-cabelos. Uns mortos menos mortos atiram-se dos primeiros andares ou dos telhados para as piscinas de salvação. Outro ficam pelas varandas onde puderam instalar as suas anticépticas comodidades e fossam como se fosse o dia do Primeiro Juízo. Claro que a Rosa sucumbe ao fim de um nada, tão expedito é o sistema de defesa de tal particular autarquia. Mas ainda assim fez com que acontecesse o que já vários cientistas de fora haviam calculado que viesse a acontecer: o progressivo aumento das camadas pestíferas e o seu aumento em profundidade. Sem querer saber se lhes interessava ou não, e nisso tinham razão porque eram mortos, os ditos estavam na eminência de activar o mais horroroso processo anti-ecológico e até mesmo anti-social, porque não restavam dúvidas: se o precário equilíbrio interno do balão estafermo fosse abalado mais meia dúzia de vezes por brisas adversas vindas do exterior corria-se o risco de um raio de merda atingir os antípodas da achatice. E então sim: teríamos o caldo entornado.
M A R

5 comentários:

Capitão Merda disse...

Pá, foste promovido a secretário?

Ceptocínico disse...

À força toda!

Capitão Merda disse...

Então o gajo que nos pague um copo.
A ti por trabalhares e a mim por observar...

Ceptocínico disse...

Garantidamente, está teso completamente!

Capitão Merda disse...

Está teso?!
Então ele que se ponha numa gaja fogosa!