Pesquisar neste blogue

28.9.12

Sempre actual...

Zé Povinho
caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro e texto de Guilherme de Azevedo.
Álbum das Glórias, Setembro de 1882

(retirado daqui)
.
.
Brinca brincando esta criança tem hoje perto de cinquenta anos de idade!
Não consta que jamais as graças da infância se houvessem conservado por tão longo tempo num homem como fenomenalmente se conservam no sujeito que hoje biografamos.
Nele concorrem em feliz conjunto todas as partes que nos enlevam e encantam no bom menino: – Casta inocência, temor de Deus, obediência a seus mestres, humildade, nariz por assoar, dor de barriga às segundas feiras e santíssima ignorância.
Aos carinhosos e desvelos de sua extremosa mãe, a Carta, e de seu galhofeiro pai, o Parlamentarismo, se deve o estado miraculoso de infantilidade que tão vantajosamente recomenda este vulto à simpatia e ao espanto de todo o mundo.
Eis em resumo a instrutiva história de portento tão admirável e prodigioso:
Zé Povinho começava apenas a ter-se nas pernas, cambadas pelos esforços feitos para se pôr em pé antes de tempo, quando os poderes seus pais, pondo-o à porta das instituições na franca direcção do olho da rua, lhe fizeram este memorável discurso:
“Zezinho, vai passear.
“Nós teus pais, depois de havermos cogitado com diurna e nocturna aplicação sobre o que mais convém à tua felicidade, resolvemos de comum acordo que o melhor dote que se te podia dar era a liberdade, pois que a liberdade é, como bem dizem os filósofos, o maior dos bens, superior ao próprio ouro.
“Sê pois livre, e capacita-te de que vais muito mais bem convidado com a licença que para isso te conferimos do que com três ou quatro pintos que te metêssemos no bolso!
“Escola não a tens, porque te poderia fazer mal o puxar muito pela cabeça nos estudos, e lá diz o ditado que antes burro vivo, como tu estás, do que doutor morto, como tão frequentemente se tem visto.
“Tenhas tu a graça de Deus Nosso Senhor, se é o que se pretende e essa divina graça, lá está o reverendo pároco da tua freguesia encarregado de ta dar, se lhe pagares a côngrua e te chegares a ele pelas festas com o competente folar, ou seja em bebida engarrafada, em lombo de animal suíno, em pão de ló coberto, ou em outro qualquer mimo comestível e de estimação.
“Para manter o teu direito e defender a tua justiça encontrarás também os tribunais competentes, com advogados idóneos para discursarem a teu respeito pela gratificação de seis moedas, vestindo-te a túnica alva e luminosa da inocência ou amarrando-te à perna a grilheta do forçado, segundo sejas tu que dês as seis moedas, ou seja a parte contrária que as dê.
“Para guardar tua pessoa e bens, concedemos-te o exército, a armada e a polícia civil.
“Por meio do exército terás uma ou duas paradas por ano, se o tempo permitir essa recriação honesta sem perigo de se deteriorarem com a chuva e os ventres dos majores.
“Por meio da armada terás as salvas reais por ocasião dos aniversários patrióticos, e tiros no Tejo de quarto em quarto de hora sempre que morra príncipe, para o fim de lembrar aos viventes que não foi esse mesmo príncipe que em vida inventou a pólvora que se lhe consagra em morto.
“Por meio da polícia, enfim, te será mantido o direito sagrado de receber como um dom dos céus toda a bordoada que te apliquem e que ninguém mais ousará retirar-te do corpo, levando-se a delicadeza contigo nestas questões até ao ponto de não somente se te não exigir que retribuas com o menor tabefe todas as unhas que te dêem, mas até de te sepultarem no fundo de uma masmorra caso insistas indelicadamente em qualquer ideia de troco a dar aos cascudos com que liberal e desinteressadamente te mimoseiem.
“Enquanto ao governo incumbido de assegurar a manutenção e a persistência de toda esta caranguejola tão engenhosamente concebida para tua satisfação e recreio, serás tu mesmo que por tua mão o elegerás, metendo escrito num papel o nome daquele que destinares para poder executivo dentro de uma caixa, que para esse fim tomará por vinte e quatro horas a designação de urna a fim de que tu possas dizer que vais à urna; pois se dissesses que ias à caixa, o acto eleitoral perderia de sua gravidade e tornar-se-ia jocoso em demasia. Para o fim de te dar o papel com o nome do sujeito que hás-de meter na urna e que nós nos encarregamos de te confeccionar, lá estará um funcionário especial intitulado o Regedor.
“Para continuares a gozar o sumo bem da liberdade que te outorgamos, tu não tens que ter senão o pequeno incómodo de pagar tudo o que isto custa, e de dar os vivas do estilo, sempre que a ocasião se ofereça, ao príncipe, à real família e às instituições que vivem à tua custa.
“Finalmente sempre que precisares do que quer que seja, trata de o ganhar, porque ninguém te dá nada. Adeus Zezinho, vai-te com Nossa senhora!”
Crescido, Zé Povinho correspondeu perfeitamente às esperanças que nele depositaram os solícitos poderes do reino. Como desenvolvimento de cabeça ele está pouco mais ou menos como se o tivessem desmamado ontem.
De músculos, porém, de epiderme e de coiro, engrossou, endureceu e calejou como se quer, e, cumprindo com brio a missão que lhe cabe, ele paga e sua satisfatoriamente.
De resto, dorme, reza e dá os vivas que são precisos.
Um dia virá talvez em que ele mude de figura e mude também de nome para, em vez de se chamar Zé Povinho, se chamar simplesmente Povo. Mas muitos impostos novos, novos empréstimos, novos tratados e novos discursos correrão na ampulheta constitucional do tempo antes que chegue esse dia tempestuoso.
Por tudo pois, ao resumirmos nestes leves traços, a interessante história do Zé Povinho, o nosso parabém (sic) cordial a seus sábios e carinhosos pais os Públicos Poderes.

4 comentários:

Malena disse...

Livre, desde que com as grilhetas da ignorância...

Anónimo disse...

Liberdade é na Venezuela! Aí é que é o verdadeiro exemplo de esquerda. lá é que se vive bem e há liberdade de expressão. Já perceberam porque ninguém se atreve a fazer oposição ao Jerónimo.

Anónimo disse...

Mas quem é que falou na Venezuela?
Não te ensinam a ler textos, na gamela da juventude partidária?
Pois, também não sabem...

Anónimo disse...

o gaijo deve ser amigo do "inteligente" Borges, a esperteza a soldo do dinheiro sujo